A família entre o público e o privado: A proposta metodológica da autonomia relacional na análise do regime jurídico do casamento

Abstract

O presente estudo versa sobre um dos principais desafios que se colocam ao Direito da família dos nossos dias: a descoberta do equilíbrio perfeito entre duas exigências à primeira vista contraditórias — o relevo a dar à autonomia da vontade dos membros da família e a necessidade da intervenção do Estado na vida familiar. O referido desafio aparece em estreita conexão com as tendências sociológicas de individualização e privatização e com a “liquefacção” das instituições família e casamento. Estas tendências parecem ter transformado profundamente a realidade da família e do casamento, tornando, deste modo, uma reflexão sobre a família, sobre o casamento e, sobretudo, sobre o Direito da família particularmente complexa e difícil. São várias as interrogações com que um jurista, que não queira pensar acriticamente o Direito da família, se depara: Qual a relação entre o Estado e a família? Pode o Estado regular a família? É necessário um Direito da família? O Direito da família é verdadeiro Direito? Qual o foco da sua atenção: o indivíduo ou o grupo familiar? O problema da relação entre o Estado e a família revela-se intrinsecamente ligado ao próprio conceito de Estado de Direito e à sua adjectivação como Estado de Direito liberal ou como Estado de Direito social, em particular. A opção por situar aquela relação no contexto deste último modelo permite antever algumas das respostas às interrogações apresentadas. Não ficam, porém, resolvidas outras questões que dizem respeito aos contornos específicos do Direito da família, designadamente indagar se o foco da atenção deve ser o indivíduo ou o grupo familiar e saber qual o enquadramento jurídico para a liberdade dos seus membros, para a responsabilidade destes e para a solidariedade entre eles. Só a adopção de uma metodologia de análise da realidade da família e das relações indivíduo-família, família-Estado e indivíduo-Estado, ancorada em certos pressupostos antropológicos, sociológicos e filosóficos, pode fornecer as bases para uma proposta de conciliação coerente entre a protecção da família, por um lado, e a garantia dos direitos fundamentais dos seus membros, por outro. Impõe-se, assim, uma breve excursão sobre algumas das propostas metodológicas actuais, com particular projecção no discurso jurídico sobre o Direito da família, de modo a permitir uma opção consciente por uma determinada metodologia. A opção pela “autonomia relacional” como proposta metodológica de análise do Direito da família — que se traduz numa reconfiguração do conceito de autonomia individual através da integração da interdependência que caracteriza qualquer relação de intimidade e, por maioria de razão, uma relação familiar — possibilita uma resposta adequada à questão da compatibilização entre a protecção da família e a garantia dos direitos fundamentais dos seus membros. Permite, ainda, fornecer critérios claros que possam guiar as opções do legislador, bem como orientar o julgador na sua aplicação em direcção a uma realização efectiva dos valores da justiça e da dignidade da pessoa humana. É à luz desta perspectiva metodológica que se procurará configurar a relação entre a família e o Direito. Antes, porém, de se proceder à aplicação da perspectiva metodológica adoptada, várias questões se levantam: O Direito da família é verdadeiro Direito? Tratar-se-á de um ramo do Direito privado ou do Direito público ou ainda de um tertium genus? A resposta a estas questões exige a consideração do Direito da família em sentido amplo e em sentido restrito. Feito este enquadramento, importa escolher uma relação familiar para testar a metodologia adoptada nas concretas soluções legais encontradas para os problemas jurídicos que coloca. A escolha recaiu sobre a relação matrimonial, por ser a relação familiar em que mais tem incidido o debate sobre a intervenção do Estado na família. Assim, procurarseá analisar, sobretudo, o conteúdo de tal relação, reclamando o lugar central que, nesse contexto ostenta a assunção pelos cônjuges de uma plena comunhão de vida. Tal aspecto condicionará a posição a tomar em determinados pontos do regime jurídico do casamento, designadamente quanto à garantia dos direitos e deveres pessoais dos cônjuges e, consequentemente, quanto à sua juridicidade. Avançase com a probabilidade da preferência pela tese da natureza jurídica, afirmando os direitos e deveres conjugais como jurídicos e não com um conteúdo meramente moral ou ético, pois prevê-se ser essa a solução imposta pela orientação metodológica da autonomia relacional. Tal defesa e a concepção de relação matrimonial que lhe subjaz ditarão provavelmente a negação da natureza puramente fáctica da relação conjugal e da sua equiparação ou aproximação à união de facto, bem como a rejeição da tese da redução da relação matrimonial a um puro contrato e a uma instituição jurídica tout court. Antecipa-se que a concepção que melhor se ajustará ao casamento enquanto estado oscilará entre o pólo institucional e o pólo contractual.

The current research work focuses on one of the main challenges that Family Law faces nowadays: The determination of the perfect balance between two apparently opposite demands – the importance of family members’ autonomy and the need of State intervention within the context of family life, and the aim to find the perfect balance accordingly to the foundational values of justice and human dignity. The aforementioned challenge is closely connected with sociological trends of individualization and privatization, as well as with the “liquefaction” of the institutions of family and marriage. Such trends seem to have deeply transformed the reality of the family and marriage, and make particularly difficult the reflection about both family and marriage, in particular in the context of Family Law. There are many questions that confront whoever reflect about Family Law in a critical way: Which should be the relation between State and the Family? Can the State effectively regulate the family? Is there a need for Family Law? What should be the focus of its attention: the individual or the family group? The problem of the relation between the State and family is intrinsically associated with the “nature” of the State, as well as with its “qualification” as liberal or social State. The opinion to place the aforementioned relation in the context of the latter is thought to allow foreseeing some of the answers to the questions raised above. Some other disputes remain, however, unsolved, including the ones that focus on specific contours of Family Law, namely: whether its focus should be the individual or the family as a group, and which should be the le- gal framework of the liberty of the members, their responsibilities, and solidarity within the context of the family. The adoption of the current methodology of analysis reveals itself to be essential to examine the family and the relation family-individual, the relation State-family, and the relation State-individual. Only such a methodology, anchored in specific philosophical and sociological assumptions, may supply the grounds to a coherent proposal of conciliation between the protection of the family, on the one hand, and the protection of individuals’ fundamental rights, on the other. Therefore, one should proceed to a brief analysis of some of the present methodological proposals, which have particular influence in the legal debate regarding Family Law, in order to allow a percipient adoption of the methodology. The option in favour of “relational autonomy” as the methodological proposal adopted to analyse Family Law – that translates into a reconfiguration of the concept of individual autonomy through the integration of interdependence, which characterizes every relation of intimacy and, from a yet stronger reason, every family relation – allows a coherent answer regarding the congruity between the family protection and the respect for its members’ fundamental rights. It further provides intelligible criteria that may guide the legislature’s options, as well as lead the judge towards an effective realization of the values of justice and human dignity. Such methodological perspective sheds light on the configuration of the relation between the family and the Law. Before the trial of the application of such methodology to Family Law, one should try to answer several important questions: Is Family Law a true branch of Law?; Should it be placed in the context of Private Law or Public Law or should it be considered a tertium genus? Providing an answer to those questions demands the consideration of Family Law in both a narrow and broad sense. Within this framework, one should choose one particular family relationship in order to test the methodology adopted on the specific legal solutions to the juridical problems they present. With this in mind, one had chosen to focus on the marriage given that this family relationship has been a preferential arena of the debate on State’s intervention in family matters. Therefore, the exam of this relationship will centre its attention on the content of the marital relationship, bearing in mind that crucial role of the spouses’ commitment to a full communion of life. Such commitment is thought to influence the opinion one will assume about several aspects on marriage legal regime, namely regarding guarantying the performance of the rights and duties of spouses, as well as its juridical nature. One puts forward the likelihood of a preference for the juridical nature of such rights and duties, recognizing they have more than a moral or ethical content. The methodological perspective of relational autonomy supports this preference. This representation of marriage and of the relationship between spouses will argue against its consideration as a pure fact or, in other words, against a defence of an equal or similar treatment of the one given to de facto unions. It will also argue against the thesis of marriage contractualization, as well as against its perception as a legal institution. One can foresee the conclusion that marriage — as an intimate relationship between two adults — will simultaniously present an institutional dimention, as well as a contractual one.