A INCONSTITUCIONALIDADE DAS INCRIMINAÇÕES DA MORTE, MAUS TRATOS E ABANDONO DE ANIMAIS DE COMPANHIA - A Ausência de Bem Jurídico-Penal Legitimador das Normas Incriminatórias

Abstract

O aditamento no Código Penal do Título VI, denominado «Dos crimes contra animais de companhia», pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, deu origem a uma querela doutrinal e jurisprudencial em torno da legitimidade constitucional das incriminações contra animais de companhia. O surgimento desta Lei foi pautado por um contexto de pressão generalizada, exercida sob o legislador, no sentido de pôr cobro às condutas de maus tratos de animais, enquanto ações causadoras de enormes atrocidades em relação às quais o agente não deve ficar impune. Tendo em atenção o regime legal vigente no ordenamento jurídico-penal português, considerando as alterações introduzidas pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, formula-se a questão central de saber se serão as incriminações da morte, maus tratos e abandono de animais de companhia inconstitucionais. O debate em torno da legitimidade constitucional das incriminações contra animais de companhia não é exclusivo do ordenamento jurídico português, acabando por ser uma questão levantada um pouco por toda a parte. Entre nós, sabemos que a tutela criminal é restrita ao conceito de animais de companhia, definição que carece de determinação no plano jurídico-penal. Importa, por isso, compreender quais as caraterísticas essenciais desta categoria de animais que justifique a atribuição de proteção penal. Para a análise da questão central em debate, parte-se do princípio jurídico-constitucional implícito do “direito penal do bem jurídico”, enquanto parâmetro fundamental de controlo da constitucionalidade das normas incriminatórias, aplicável pela maioria da doutrina e pela jurisprudência constitucional, em Portugal. À luz deste princípio, para haver criminalização terá que estar em causa a tutela de um bem jurídico digno de pena e, além disso, a intervenção penal terá que se revelar necessária. A análise deve, então, partir da averiguação do primeiro pressuposto do princípio-orientador, isto é, as normas incriminatórias contra animais de companhia devem tutelar um bem jurídico-penal. E, no que concerne à análise deste pressuposto, preside um debate intenso ao nível da doutrina e jurisprudência. Por um lado, encontramos os defensores da existência de bem jurídico-penal legitimador das incriminações, justificando-se, por isso, a averiguação do preenchimento do pressuposto da necessidade da intervenção penal. Por outro lado, deparamo-nos com a posição daqueles que recusam a atribuição de dignidade penal às normas incriminatórias contra animais de companhia, por ausência de bem jurídico digno de tutela penal. Aproveita-se para formular algumas subquestões que se afiguram pertinentes a este propósito, e que resultam do desenvolvimento de reflexões neste contexto. Se a nossa Constituição concede proteção explícita ao ambiente, no artigo 66.º, então poderemos afirmar que a mesma também tutela os animais de companhia, atendendo a que estes são parte integrante do meio ambiente? Mais, como as normas de direito comunitário e internacional têm aplicação no ordenamento jurídico Português, por força do disposto no artigo 8.º da CRP, então tais normas poderão servir de ponto de partida à identificação do bem jurídico-penal legitimador das incriminações contra animais de companhia? Haverá ainda muito por discorrer neste contexto.

The addition of Title VI to the Penal Code, called «From crimes against companion animals», by the Law no 69/2014, of 29 august, gave rise to an intense doctrinal and jurisprudential discussion around the constitutional legitimacy of incriminations against companion animals. The emergence of this Law was lined by a context of generalized pressure, exercised on the legislator, in the sense of ending to the animals maltreatments actions, because they cause enormous atrocities in relation to which the agent must not go unpunished. Taking into account the legal regime in force in the portuguese legal system, considering the changes introduced by the Law no 39/2020, of 18 august, the central question is formulated as to whether the incriminations of death, maltreatment and abandonment of companion animals are unconstitutional. The discussion around the constitutional legitimacy of incriminations against companion animals isn´t exclusive to the portuguese legal system, being an issue raised a little by all over the world. Between us, we know that criminal protection is restricted to the concept of companion animals, definition that needs determination in the legal-criminal plan. It is therefore important to understand the essential characteristics of this category of animals that justify the attribution of criminal protection. For the analysis of the central issue under discussion, we start from the implicit legal-constitutional principle of “criminal law of the legal interest”, as a fundamental parameter for the control of the constitutionality of incriminating norms, applicable by the majority of the doctrine and by the constitutional jurisprudence, in Portugal. According to this principle, for there to be criminalization there must be a legal interest with criminal dignity and, moreover, the criminal intervation must be necessary. The analysis must begin with the investigation of the first requirement of the guiding principle, this is, the incriminating norms against companion animals must protect a legal interest. And, about this analysis, there is an intense discussion in the doctrine and jurisprudence. On the one hand, we find the defenders of the existence of a legal interest that legitimizes the incriminations, justifying the analysis of realization of the requirement of the need for criminal intervation. On the other hand, there are positions that refuse to attribute criminal dignity to incriminating norms against companion animals, because there isn´t legal interest with criminal dignity. We take the opportunity now to formulate some subquestions that are relevant to this end, and that result from the development of reflections in this context. If our Constitution assigns explicit protection to the environment, in article 66.º, then can we say that it also protects companion animals, since they are an integral part of the environment? Furthermore, as the norms of community and international law are applied in the Portuguese legal system, due to the provisions of article 8.º of the Constitution of the Portuguese Republic, so can the norms serve as a starting point for identifying the legal interest that legitimizes incriminations against companion animals? There is still much to be said in this context.