O artigo 164º do Código Penal Português à luz da Convenção de Istambul.

Abstract

O tratamento dogmático e processual penal do crime de violação tem demonstrado um caráter mutante e alinhado com a evolução do pensamento e mentalidade social, relativamente à Sexualidade. Trata-se de um percurso difícil a ser feito pelo legislador neste tipo de crime, não só pela perversidade que evidencia, como também em virtude de se situar num âmbito de difícil compreensão por parte da generalidade das pessoas. De um caráter moralista este tipo de ilícito passou a ser dotado de um caráter tutelador de um dos bens jurídicos cuja realização é imprescindível pelo homem, o da sua sexualidade. Dos crimes contra a moralidade, a violação passa a contar nos crimes contra a liberdade sexual. Segundo JOSÉ MIGUEL FIGUEIREDO e PEDRO CAEIRO, a liberdade sexual é “a faculdade de escolher praticar ou não praticar, de forma livre, determinado ato sexual e de escolher o/a parceiro/a para tal fim”. Trata-se de uma evolução clara neste sentido. O facto de cada um dos cidadãos, enquanto tal, ter a faculdade de determinar-se consoante a sua vontade faz com que a emancipação da opinião e vontade de cada um, neste aspeto, se sobreponha a interesses e convicções libidinosas pessoais. A 11 de Maio de 2011, formalizou-se a Convenção do Conselho de Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica. Portugal acolheu esta Convenção mediante a Resolução da Assembleia da República nrº 4/2013 de 21 de janeiro. Era evidente a necessidade de uma resposta do país relativamente àquele que é um dos crimes que mais preocupação causa no Ordenamento Jurídico Português dado o número de casos de violência contra as mulheres que, infelizmente, são as principais eleitas como alvos de violência, seja esta sexual, física, doméstica ou psicológica. Com a Lei n.º 83/2015 de 5 de agosto, o crime de violação sofreu uma significativa modificação, em parte devido a um Projeto de Lei do BE. Ao contrário do que se esperaria surgem dois aspetos contraditórios para com a última lei mencionada. O relatório da Amnistia Internacional “Right to be free from rape” que firmou que o consentimento não pode ter-se como assumido somente por não haver resistência física devendo ser voluntário e interpretado de acordo com as circunstâncias envolventes, tendo ambas as partes de estar em plena capacidade para consentir. E, em segundo lugar, é apresentado o Relatório do GRÉVIO, que afirmou que a lei n.º 83/2015 não se encontrava em concordância com a Convenção de Istambul dada a utilização do vocábulo “constranger”, pois fazia persistir a necessidade de demonstração de resistência por parte da vítima para que se configurasse o tipo de ilícito típico e se procedesse então à acusação do agressor.A necessidade de uma nova intervenção legislativa era clara.Com a Lei n.º 101/2019 de 6 de setembro é feita a mais recente alteração à matéria em questão, surgindo como forma de solucionar as questões levantadas à construção legislativa de 2015, no que toca ao artigo 164.º do CP. Esta reforma teve por base propostas feitas pelo BE, PAN e PS que julgavam, e corretamente a nosso ver, que seria necessário um aumento de tutela á vítima pelo facto de ser exigido um constrangimento contínuo gerado pelo agente do crime para que houvesse a consumação do crime, pondo em questão certos casos em que esse constrangimento não era tão claro assim, ou tão só a vítima não teve a capacidade necessária para resistir, de forma a que fosse possível apreciar se houve a existência do mesmo sobre ela. Contudo, esta lei ficou aquém do esperado, pelo que o legislador optou pela manutenção do vocábulo "constranger", apesar de colmatar certas imprecisões com a "vontade cognoscível" da vítima. Perante tal, é de notar certas imprecisões já que a lei portuguesa foca no constrangimento a averiguação de crime permitindo haver a possibilidade de desvio da vontade da vítima, circunstância esta que realmente se tem como essencial para se ver preenchido o tipo de ilícito. É compreensível a necessidade de proceder a um estudo mais pormenorizado sobre conceitos como o constrangimento, a vontade cognoscível da vítima e a violência para podermos traçar aquele que seria o modelo de Incriminação que melhor se adequaria à conjuntura sociojurídica portuguesa, dada a insuficiência daquele que hoje em dia vigora. Isto porque, de acordo com a nossa opinião, surgem problemas de aplicação e interpretação jurídica dada a possível subjetividade que a cognoscibilidade da vontade pode alcançar, de acordo com o estudo a que procedemos ao longo da dissertação, bem como de acordo com a problemática da contínua exigência de violência que adiciona sobre a vítima um “peso” desnecessário para a vítima. Concluindo, a dissertação em questão visa sobre os aspetos controversos deste tema, de forma a alcançar o melhor entendimento e tratamento ao mesmo.

The dogmatic and criminal procedural treatment of the crime of rape has shown a changing character and aligned with the evolution of thought and social mentality, regarding Sexuality. It is a difficult path to be followed by the legislator in this type of crime, not only because of the perversity that it shows, but also because it is located in an area that is difficult to understand by most people. From a moralistic character, this type of illicit became endowed with a protective character of one of the legal interests whose realization is essential for man, that of his sexuality. From crimes against morality, rape counts in crimes against sexual freedom. According to JOSÉ MIGUEL FIGUEIREDO and PEDRO CAEIRO, sexual freedom is “the ability to freely choose to practice or not practice a certain sexual act and to choose the partner for that purpose”. This is a clear evolution in this direction. The fact that each of the citizens, as such, has the ability to determine themselves according to their will means that the emancipation of the opinion and will of each one, in this aspect, takes precedence over personal libidinous interests and convictions. On May 11, 2011, the Council of Europe Convention for the Prevention and Combat of Violence against Women and Domestic Violence was formalized. Portugal accepted this Convention through Resolution of the Assembly of the Republic no. 4/2013 of 21 January. It was evident that the country needed a response to what is one of the crimes that causes the most concern in the Portuguese legal system, given the number of cases of violence against women who, unfortunately, are the main targets of violence, whether sexual , physical, domestic or psychological. With Law No. 83/2015 of 5 August, the crime of rape underwent a significant modification, in part due to a BE Bill. Contrary to what one would expect, two contradictory aspects arise with the last mentioned law. Amnesty International’s report “Right to be free from rape” which stated that consent cannot be taken for granted only because there is no physical resistance, it must be voluntary and interpreted according to the surrounding circumstances, with both parties having to be in agreement. full capacity to consent. And, secondly, the GRÉVIO Report is presented, which stated that Law No. of resistance on the part of the victim so that the typical type of offense was configured and the aggressor was then prosecuted. The need for a new legislative intervention was clear. most recent amendment to the matter in question, emerging as a way to resolve the issues raised in the 2015 legislative construction, with regard to article 164 of the CP. This reform was based on proposals made by the BE, PAN and PS that judged, and correctly in our view, that it would be necessary to increase the protection of the victim due to the fact that a continuous constraint generated by the agent of the crime was required for the consummation of the crime, calling into question certain cases in which this constraint was not so clear, or only the victim did not have the necessary capacity to resist, so that it was possible to assess whether there was the same constraint on her. However, this law fell short of expectations, so the legislator chose to maintain the word "constrain", despite filling in certain inaccuracies with the "knowable will" of the victim. In view of this, it is worth noting certain inaccuracies since Portuguese law focuses on constraining the investigation of a crime, allowing for the possibility of deviation of the victim's will, a circumstance that is really considered essential to see the type of illicit fulfilled. It is understandable the need to carry out a more detailed study on concepts such as constraint, the victim's knowable will and violence in order to outline what would be the model of Incrimination that would best suit the Portuguese socio-legal context, given the insufficiency of what is currently day in force. This is because, according to our opinion, problems of application and legal interpretation arise, given the possible subjectivity that the cognoscibility of the will can achieve, according to the study that we carried out throughout the dissertation, as well as according to the problem of continuous demand for violence that adds unnecessary “weight” to the victim. In conclusion, the dissertation in question aims at the controversial aspects of this topic, in order to achieve a better understanding and treatment of it.